Se eu fosse Jair Bolsonaro
Está claro já que Bolsonaro governa através do caos e da desconfiança. Sua tática funcionou em alguma medida no primeiro ano de mandato (2019), até sofrer suas primeiras baixas com a contra investida do STF nos polêmicos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. A pandemia cumpriu mais uma etapa no freio a Bolsonaro e às suas investidas contra o establishment.
Mas não se iludam — Bolsonaro ainda opera pelo caos. A principal mudança em sua tática foi incorporar aquilo que se denomina de “Centrão” em sua base, oferecendo aos partidos que compõem o bloco mais poder, em troca de uma blindagem contra um impeachment que pairava no ar. Com 30% de aprovação praticamente fixos durante todo o seu mandato, Bolsonaro ainda está com uma popularidade alta para ser impedido. O parlamento brasileiro soube se aproveitar de um governo que por um lado é fraco demais para governar sem uma base aliada fisiológica e, por outro, tem apoio suficiente para não ser derrubado. Não custa lembrar, também, que Bolsonaro integrou o centrão por quase 30 anos. Ele conhece muitos dos parlamentares, já tendo longas passagens pelo PP, por exemplo, partido que agora elegeu o presidente da Câmara, Arthur Lira. A “bolsonarização do centrão” se deu para que houvesse uma acomodação entre os poderes. Bolsonaro freou seus ímpetos golpistas — já confirmados por reportagens sérias — enquanto judiciário e legislativo permaneceriam “independentes”, observando o circo pegar fogo.
E pegou. A pandemia não foi embora, e Bolsonaro de certa forma soube se aproveitar dela para operar seu método caótico de governar. Através da insegurança, da intriga e da imprevisibilidade, Godzilla joga cortinas de fumaça todas as vezes que se sente acuado. Seja com uma mansão comprada pelo filho, com uma frase medonha ali, outra acolá, Bolsonaro brinca com a opinião pública e com a imprensa, enquanto articula sua sobrevivência política.
Então, ele não erra? Seria Bolsonaro um gênio da política? A resposta à primeira pergunta evidentemente é negativa. A resposta da segunda, em tese, também. Há uma dúvida que paira no ar. Qual o contingente para que Bolsonaro consiga se manter no poder depois de uma gestão tão desastrosa quanto a de agora? Depois de tantos estelionatos eleitorais — desde a sabotagem à agenda anticorrupção de Moro aos fracassos da política pseudoliberal de Paulo Guedes. Como ele se mantém viável? Resta aí seu trunfo político. Algo que nem a mídia tradicional, nem seus adversários políticos mais experientes conseguiram ainda compreender. Eu não arrisco a dar a palavra final, mas pessoas como o professor João Cezar de Castro Rocha e Martim Vasquez da Cunha parecem apontar para um caminho correto. Bolsonaro opera nas franjas culturais da sociedade. Se aproveita do medo e da insegurança que a sociedade “pós-moderna” enfrenta. Esse é seu maior trunfo. Mas parece haver um obstáculo à sua investida, a finitude humana.
A vida está sendo perdida em números alarmantes com a covid-19. Godzilla, buscando se aproveitar do medo das pessoas de perderem o emprego — como todos os políticos fizeram, diga-se de passagem — tinha que fazer uma escolha. Acolhia a pandemia dentro da cartilha do autoritário clássico, aproveitando-se desde o início de lockdowns em massa para ampliar seu poder sob os Estados e as PMs; ou dobrava a aposta na política do caos, negando a gravidade da doença, reforçando seu comprometimento com a classe baixa autônoma e informal que precisa trabalhar e o empresariado médio que não pode fechar. No primeiro momento, pareceu que a aposta tinha dado certo. Com o acordo com STF e Congresso, Bolsonaro manteve sua popularidade e lucrou com ônus político que ficou com os governadores e prefeitos exclusivamente, que tiveram que fechar as portas dos comércios e das escolas após o Supremo afirmar nosso nem tão óbvio federalismo, enquanto Bolsonaro criticava-os confortavelmente, por “estar isento de responsabilidade”.
Se Bolsonaro tivesse mantido essa narrativa de que o STF “não o deixou trabalhar, e que a culpa era dos governadores e prefeitos”, ele poderia se garantir na opinião pública, inflada positivamente com o pagamento do auxílio emergencial e suas propagandísticas viagens ao Nordeste. Mas aí veio seu maior erro: as vacinas. Não que fosse uma surpresa, Godzilla apostou no negacionismo desde o início. Dessa forma, seria um pouco incoerente cair de boca assinando contratos com Pfizer e comprando milhões de vacinas. Mas, ainda assim, ele poderia tê-lo feito sem muito marketing. Bolsonaro confundiu a Pfizer com a Coronavac, de Dória. Se sua opção fosse correr pela vacina, teria comprado a Pfizer, vacinado brasileiros antes de Dória, e hoje não haveria quase três mil mortes por dia no Brasil. Mas cá está o problema de governar pela desconfiança e pelo caos. O risco de se confundir é alto, uma hora você erra e as consequências se tornam imprevisíveis. Por isso talvez alguns acusem Bolsonaro de alguma patologia. Não sei se concordo. Talvez a estratégia seja usar uma patologia presente em todos nós e se aproveitar politicamente dela, aos moldes do que acontece já com o QAnon. Subestimar a gravidade da covid custou para Trump a reeleição, e pode custar a de Bolsonaro também.
O trunfo de Bolsonaro foi o de ser um político que se vendia numa embalagem de outsider, sendo na verdade um velho político que estava há quase trinta anos no parlamento, empregando filhos, mulher e cometendo o peculato do mais baixo clero possível, as rachadinhas. Isso só foi possível com anos de construção de uma imagem sólida nas redes, movimento que não foi antecipado pelos adversários e até hoje surpreende. Godzilla só se tornou Godzilla porque soube interpretar os desejos de cidadãos brasileiros revoltados, que vislumbraram em sua figura um sinal de protesto contra suas frustrações. O ano de 2018 foi um sucesso para a antipolítica, entre outros motivos, por essa "gestão de frustrações". Agora, Bolsonaro não esperava uma pandemia que provocasse o sentimento mais melancólico nas pessoas, o da perda, o da finitude. Bolsonaro fez pouco caso com a vida de centenas de milhares de brasileiros que ele governa — quase três centenas de milhares, na verdade. A banalização da morte ocorreu no Brasil, Godzilla acertou em cheio nessa, mas parece haver um teto que as instituições e boa parte da população não aceita mais. A pandemia não durou um ano e as vacinas demoraram demais para chegar. Quando chegaram, estão demorando a entrarem nos braços de quem precisa. O Brasil saberá impor algum limite? Algumas pesquisas mostram que sim. Se eu fosse Jair Bolsonaro, estaria correndo atrás de vacinas agora. Seu futuro político — e sua própria liberdade — depende delas.